domingo, 24 de maio de 2015

O Anjo Que Não Sentia Dor.

Os corredores do hospital estavam mergulhados em silêncio.
Lembro bem, pois eu conseguia ouvir o som dos minutos que se arrastavam. O relógio da parede ria da minha pressa... Ele sabia que eu dependia de sua disposição.
Já era tarde, mas eu não sentia sono. A cortina estava aberta, eu via as estrelas lá fora. Sentei-me na poltrona ao lado da maca, encolhi as pernas e peguei a mão da minha amiga, que pendia para fora do lençol branco.
Ah, como ela estava gelada. Seu rosto estava pálido, os olhos estavam cerrados e as pontas de seus dedos estavam azuis. Bem diferente de quando eu a havia encontrado naquela tarde, mergulhada numa banheira, com toda a água quente tingida de vermelho. O braço encostado à parede, todo marcado e dilacerado, os olhos vazios, o momento em que eu escorreguei quando pisei na lâmina ensanguentada que ela havia deixado cair.
Fechei os olhos e apertei ainda mais os dedos dela entre os meus.
O som da sirene da ambulância ainda martelava em meus ouvidos. Era o som da tristeza, da desgraça, da dor, da surpresa. Perdi minutos preciosos tentando enxergar as teclas certas no celular, as lágrimas turvavam a minha visão. Nem tive tempo de prestar atenção no choro dos pais dela, na surpresa em seus olhos, na pergunta entalada em suas gargantas. Não prestei atenção, pois era a mesma que estava entalada na minha. Por que ela faria isso?
De repente, a raiva cresceu em mim e soltei a mão dela.
Como ela podia fazer uma coisa dessas? Sem falar nada com ninguém, sem dar qualquer sinal? Escondida, de tudo e todos, era como se ela houvesse planejado isso. Ela, que era como uma extensão de mim mesma, que sempre foi a outra metade da minha própria sombra. Eu me senti traída, desamparada, como se ela estivesse tentando me largar aqui, sem mais nem menos.
Se ela me falou, eu não ouvi. Talvez eu não quisesse ouvir, não quisesse pensar que aquilo poderia ser, um dia, possível. Não é essa a nossa tendência natural? Fugir da dor... Simplesmente porque ela dói. E não queremos senti-la, embora ela faça parte da vida.
Suspirei, enquanto uma de minhas mãos deslizava ao bolso da calça e pegava, dali, um objeto de metal. A lâmina pareceu fria e pesada entre meus dedos, e olhava para mim com deboche. Meus olhos claros correram para meus próprios braços descobertos, e senti um embrulho no estômago.
Passei a ponta dos dedos sobre as minhas próprias cicatrizes, as mesmas que, dali a alguns dias, eu veria nos braços da minha amiga. Elas havia sido deixadas ali por uma lâmina diferente, mas foram originadas pela mesma dor. E eu as escondera, assim como ela fizera com seus sentimentos.
Talvez fosse minha culpa. Eu havia dito a ela que ela nunca seria capaz de entender a minha dor.
Senti as lágrimas escorrendo pelo meu rosto enquanto eu pegava novamente a mãozinha fria dela entre as minhas. Jurei de todas as maneiras possíveis que estaria lá para ela, que não a deixaria sozinha, que sua vida valia alguns minutos dos meus dias. Mesmo que eu fechasse os olhos, as cicatrizes ainda estariam lá. Ah, céus, eu só queria que ela melhorasse logo.
Naquela noite, eu só pude ouvir a respiração fraca dela e o som dos minutos se arrastando. O relógio da parede ria da minha pressa...



- Laila.

sábado, 16 de maio de 2015

O Homem das Mãos de Seda.

Estava nublado, naquele dia.
Lembro bem, pois as nuvens cinzentas refletiam a maneira como eu me sentia. Andava sozinho por aquelas ruas, a calçada molhada da chuva de ontem.
Pensava em ir a algum lugar, embora o frio me impedisse de pensar com clareza. Ergui a gola do sobretudo e enfiei as mãos no bolso, apressado, sem olhar para frente e xingando as pessoas que, por ventura, esbarravam em mim. Talvez meu humor, tão nublado quanto aquele dia, houvesse me tornado apenas mais um pedaço daquela paisagem.
O bistrô estava cheio quando entrei.
Sentei-me diante do balcão e pedi um café. Esperava que o gosto amargo da bebida trouxesse um pouco de calor ao meu estômago vazio, do qual eu vinha judiando nos últimos dias. É, meu caro. Os dias nublados vêm para todos nós. Virei-me, distraído, para ver se havia alguma mesa vazia. E, naquele instante, meus olhos os encontraram.
Duas pessoas, numa mesinha redonda diante da janela.
A pouca luz do bistrô e a luminosidade branca que vinha de fora os transformou em duas sombras. Lembrei-me dos filmes sem cor de Chaplin. Neste, eu só ouvia risos.
Tentei desviar os olhos para a xícara de café que o garçom deixara diante de mim, mas é claro que a bebida escura não era, nem de longe, a coisa mais fascinante acontecendo ali. Com o canto da vista, eu vi as duas silhuetas mexendo os lábios, numa conversa divertida. O que poderia haver de tão maravilhoso num dia nublado e frio como aquele? Num dado momento, uma delas esticou a mão para tocar o braço da outra, cheia de carinho, e nas minhas eu só senti a textura lisa e fria da porcelana.
Irritei-me. Ora, eu estava tendo um dia decepcionante, não precisava dos outros exibindo sua alegria diante de mim. Eu os invejei como nunca naquele instante, aquelas pessoas ali, perdidas uma nos olhos da outra, com seus dedos entrelaçados. Elas apenas me fizeram recordar, com amargura, dos meus olhos secos que jamais haviam mergulhado nos de alguém, dos meus dedos gelados como seda que há anos haviam esquecido como era o toque da pessoa amada.
Mordi os lábios, queimados pelo café, a borra repousando no fundo da xícara.
Quando fiz menção de me levantar, as silhuetas o fizeram, antes de mim. Trocaram um aperto de mão caloroso com o garçom que as atendera e, então, deram as mãos. Só quando saíram de perto da luz foi que pude ver o rosto dos dois rapazes, sorridentes, cujos ombros se tocavam e cujas mãos de seda, frias como a minha, encontraram uma na outra o refúgio.
Eles saíram juntos, e foi quando abriram a porta que notei algo estranho. Esfreguei os olhos, e então as cores surgiram diante deles, alegres, e senti os raios do sol entrarem pelo vidro. Descobri que as nuvens cinzentas do céu estavam apenas em meus olhos.
Paguei, fui embora, não estava mais com pressa. Sorri.
Andava sozinho por aquelas ruas, a calçada molhada da chuva de ontem.

 
- Laila.


domingo, 3 de maio de 2015

O Massacre dos Mestres

Barbaridades acontecem, meu amigo.
Algumas nos fazem o queixo cair, outras não. O que aconteceu no Paraná no dia 29 de abril, porém, foi além de todo o meu entendimento acerca do absurdo.
Neste dia, houve um manifesto de professores e servidores estaduais. A indignação girava em torno da votação de um projeto de lei, criado pelo governador Beto Richa, que autorizava o governo estadual a fazer mudanças no fundo de previdência dos servidores públicos e estaduais.
Houve uma concentração de manifestantes no Centro Cívico de Curitiba, que protestava contra a aprovação desse projeto de lei. Teoricamente, a PM do Paraná só atacou os manifestantes quando os mesmos romperam a barreira policial que havia sido formada em volta da Assembleia.
Eu me pergunto, amigo, será que não existe algo de muito errado aqui?
Primeiramente, a Assembleia é um local que deveria representar os interesses do povo, aquilo que é melhor para ele. Foi dito que os professores e servidores estaduais portavam materiais perigosos, que podiam machucar, mas não se pode comparar isso aos recursos que possui a polícia! A polícia tinha armas, eles não tinham. A polícia tinha cachorros, eles não tinham. Assim como ela também tinha bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e outras coisas de efeito moral, eles não tinham.
Ora, talvez fosse a hora de o governo do Estado rever suas estratégias de negócio. Afinal, no próprio mundo dos negócios, a regra é negociar, não sair reprimindo o outro lado.
Houve a presença de cães da raça Pitbull em posse da polícia, e um deles atacou um cinegrafista, mordendo sua perna. Esses cães são instáveis e seu uso pela polícia é polêmico, contestável. Além do mais, o que há de tão perigoso nos professores e servidores a ponto de Pitbulls serem necessários para contê-los?

    (Fonte: www.pragmatismopolitico.com.br)

Meu amigo, tenho minhas dúvidas se os professores estavam lá para brigar. Eles são educadores, são mestres, não guerreiros armados. Sendo assim, onde é que se encaixava a brutalidade da resposta da polícia do Paraná contra eles? Fora mais de 200 feridos, alguns policiais, mas em sua maioria civis. Isso, sim, é barbaridade!
Todos nós sabemos, é claro que sabemos, que a Educação é desprezada em nosso país. O Brasil não dá valor a seus professores, não lhes dá um salário decente nem mesmo condições decentes de trabalho. Quando um jovem diz a seus pais que sonha em ser professor, os mesmos se viram para ele e perguntam, com ar de desespero "você tem certeza?".
Talvez o governador Beto Richa não entenda, mas algumas coisas precisam mudar.
Eu, como aluna, fiquei horrorizada ao saber do que havia acontecido. Não vivo mais no Paraná, mas passei 12 anos da minha vida por lá, e foi lá que tive muitos dos meus professores. É difícil descrever o meu desespero ao saber que antigos mestres meus haviam ido a esse manifesto, que alguns, inclusive, haviam se machucado. Mestres que eu tanto admirei, que eu tanto respeitei, que eu tanto sonhei em ser como eles. Mestres que eu amei, e eu não sabia o que havia acontecido com eles.
Eu sonhava com as mãos de giz, não com as mãos de sangue.


    (Fonte: farofafa.cartacapital.com.br)

A nossa situação é vergonhosa, meu amigo, mas o povo brasileiro está começando a perder o medo da polícia, das autoridades. Isso é muito bom, se eles se lembrarem do bem maior pelo qual estão lutando.
Nos países desenvolvidos, a Educação é o grande pilar. Aqui no Brasil, com tanta repressão e desprezo, esta é uma lição que ao governo não foi ensinada ainda. No final, tudo se encerra em uma sala de aula. Não há como fugir.
O engenheiro que projetou o nosso prédio foi formado por um professor. O médico que nos atende foi formado por um professor. O piloto do avião que você pegou foi formado por um professor. Seus próprios pais foram formados por um professor. Os nossos políticos foram formados por um professor (ou não, vai saber né). Se eles são bons ou não naquilo que fazem, depende de quão bom está o pilar do qual eles vieram. O que é que estamos fazendo para que as coisas mudem?
Não feche os olhos, meu amigo. A violência está aqui, à nossa volta. Mantenha-os bem abertos.

 
- Laila.