segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Exatoides (2)

CAPÍTULO 2 - ERA O CERTO, NÃO ERA?
"Dentro do carro, Lilitan ofereceu ao filho um sorriso curto e desejou a ele uma boa aula.
Marcelo caminhou pelo enorme pátio principal. Talvez fosse apenas neste dia em especial, mas a Academia estava fria. O vento que circulava por ali arrepiava os braços do rapaz, e ele se apressou para entrar logo em sua sala. Os exatoides, como ele, estavam imersos em uma expectativa silenciosa. Os resultados das últimas provas logo sairiam, e ele queria ter certeza de que ainda tinha um lugar nas melhores colocações. Isso, como seus pais insistiam em lembrar, podia garantir a ele uma vaga em uma das três Universidades de prestígio de Delce.
Enquanto Marcelo se ajeitava em sua mesa, ouviu o ruído familiar do projetor, que materializava diante da classe um vídeo em três dimensões cuja reprodução diária era obrigatória. O rapaz já havia parado de prestar atenção há muito tempo - tantas vezes já vira o vídeo que sabia repeti-lo de trás para frente.
- Não aguento mais esse vídeo - comentou uma voz ao lado dele.
- Parece que agora é lei - disse Hugo, um dos amigos de Marcelo - Todas as Academias são obrigadas a passar esse vídeo aos alunos todos os dias.
O professor, que havia acabado de fechar a porta da sala, fez um ruído exigindo silêncio. Todos se calaram. Não havia pelo que discutir. Não importava se eles queriam ver o vídeo ou não - agora era lei, e nenhuma Academia em sã consciência iria questionar a decisão do governo.
A imagem do presidente Sócrates apareceu, a luz da sala diminuiu automaticamente, e o silêncio nos segundos seguintes foi tanto que Marcelo podia ouvir o som de seu sangue correndo pelas veias.
Delce, como todos sabem, está se tornando um nome de prestígio mundial graças aos investimentos do governo em tecnologia...
Bernardo, outro amigo de Marcelo, soltou um bocejo. Cobriu a boca no mesmo instante, mas, por sorte, o professor não havia percebido.
As Academias, é claro, todos os anos formam excelentes exatoides que contribuem para o avanço da nação. Em pleno século XXV, somos o país que mais investe em educação e avanço tecnológico, bem como engenharia e astronomia...
As imagens do vídeo mostravam os observatórios de pesquisa astronômica, os laboratórios de robótica e a fachada estonteante das Academias de Exatas, onde os alunos-modelo apareciam resolvendo exercícios extremamente complexos de Física e Matemática. Marcelo observou, com o canto dos olhos, a imagem das equipes de engenharia elaborando projetos e a vista aérea dos bairros dos exatoides, com avenidas largas e calçadas limpas, prédios coloridos e moradores atarefados com roupas sociais.
É preciso que o governo mantenha o sistema para que os avanços persistam, e para isso devemos entender que aqueles que são inferiores aos exatoides devem permanecer em seus devidos lugares...
E então as imagens mudaram.
Agora, as ruas eram mais estreitas. Havia algumas rachaduras no asfalto, os prédios e as casas eram menores e a calçada era um tanto encardida. Poucas pessoas circulavam pelas ruas em contraste com o enorme número de árvores - aquele era, obviamente, o bairro dos bioloides. Estes atuavam em laboratórios de pesquisa, em hospitais e no desenvolvimento de remédios e vacinas. Além do mais, eram os responsáveis pela produção agrícola - completamente controlada e planejada.
Claro, eles não eram inúteis, Marcelo sabia muito bem disso. Estavam apenas um pouco abaixo da importância dos exatoides, mas ainda podiam viver de modo satisfatório. Toda sociedade precisa de pilares nos quais sua glória possa se erguer. Esta era a simples relação que existia entre os bioloides e os exatoides.
A classe, que já estava escura, perdeu a pouca luz que o vídeo estava fornecendo. Nesse momento, todos os alunos erguiam os olhos para as imagens - não importava quantas vezes já houvessem visto.
De alguma forma, os restos precisam ser deixados em algum lugar...
A voz do presidente Sócrates se dissolveu na mente de Marcelo enquanto seus olhos acompanhavam as imagens que ele já conhecia tão bem.
Ruas? Não, não podia ser... Eram apenas caminhos de terra, pelos quais escorriam silenciosos filetes de água suja... Casas de madeira despedaçada, telhas quebradas e placas de zinco... As casas mais aceitáveis exibiam varandas vazias e janelas fechadas. Algumas galinhas perdidas ciscavam a lama e alguns gatos encharcados se encolhiam diante das portas, tremendo. A maioria das casas tinha pequenas hortas, mas de que adiantavam? Tão pouco aquela terra tinha a oferecer...
Marcelo sentiu o estômago se revirar. Aquele era o bairro dos humanoides, o resto da sociedade. Eles não serviam para nada, e por isso ficavam naquele lugar. Em uma sociedade construída sobre os pilares das Ciências Exatas, o que é que eles poderiam fazer? Aquelas casas pertenciam aos professores de Ciências Humanas, tais como Literatura, Filosofia, História, Geografia, bem como aos contadores de histórias, escritores, artistas e poetas, todas as formas de conhecimento consideradas inúteis. Marcelo tinha consciência de que, para evoluir, Delce precisava de técnicos, engenheiros, físicos e astrônomos, exatoides capazes de extrair do intelecto humano tudo o que ele tinha a oferecer de melhor.
Aquelas pessoas não serviam para isso. Elas, para a sociedade, não serviam para nada. Eram degenerados, e mereciam as condições em que viviam. Esta era a mensagem do governo, e era nisso que os exatoides acreditavam.
Era o certo, não era?"

 
 
 
- Laila.

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