CAPÍTULO 3 - NÃO SE ESQUEÇA DA SUA FUNÇÃO.
"Ao voltar para casa, Marcelo fez algo que poucas vezes se lembrava de fazer - observou.
O céu estava azul, mas a temperatura estava baixa. Ele se perguntou o motivo, afinal, o sol brilhava como nunca. Puxou mais uma vez as mangas do casaco, tentando usá-las para cobrir, além dos braços, os dedos gelados.
Os prédios altos e coloridos projetavam-se sobre os transeuntes de uma maneira quase ameaçadora - continuem andando, era o que eles diziam, não se esqueçam de sua função. As placas de projeção holográfica pelas ruas exibiam as últimas conquistas da tecnologia e as mais recentes novidades no mercado. Marcelo desviou os olhos. A profusão de cores lhe causava dores de cabeça.
Além dele, poucos exatoides andavam pela calçada. A circulação de carros também era pouca - provavelmente a maioria estava trabalhando, pesquisando e desenvolvendo projetos para o avanço da nação. Não havia tempo para trivialidades como sair para almoçar com os amigos ou mesmo ouvir música. Eram apenas distrações das quais os exatoides deveriam se livrar para que tivessem cada vez mais tempo.
Há alguns anos, Marcelo ainda se lembrava de ouvir o canto dos pássaros, empoleirados nas árvores no caminho para casa. Agora, não ouvia mais nada. Aliás, onde estavam as árvores?
O rapaz entrou na rua de seu prédio e continuou a andar. Ao passar por uma cafeteria, ele percebeu que havia um casal sentado em uma mesa com formato de flor. Eles não conversavam, sequer se olhavam - ambos estavam com livros grossos de cálculo em mãos, estudando.
Em pleno século XXV, quem é que ainda estuda com livros de papel? Foi o primeiro pensamento que ocorreu a Marcelo. No entanto, algo naquele casal o incomodou, e ele não soube dizer o que era.
...
- Precisamos conversar.
Normalmente, era desse jeito que o pai de Marcelo perguntava como havia sido a aula do filho.
- Os resultados ainda não saíram - disse o rapaz - Talvez sejam divulgados no site da Academia daqui a algumas horas.
Euclides estava em pé, recostado à parede branca da sala. Ainda vestia o traje social que usava para trabalhar - terno risca-de-giz, gravata vermelha de seda e sapatos de couro. Seu silêncio fez com que Marcelo olhasse para ele - apenas para encontrar um par de olhos escuros e vazios.
- Não perguntei sobre os resultados - disse o pai - Refiro-me ao André. Eu e Lilitan vamos buscá-lo na Academia Internato e conferir os resultados das avaliações dele.
- Ah, sim. Claro - Marcelo retrucou - E o que o senhor vai fazer com ele?
Algo se acendeu nos olhos de Euclides, e isso não passou despercebido ao rapaz.
- Os resultados dele vão dizer - respondeu - Incomoda-me saber que um filho meu precisou fazer estas avaliações de nivelamento. Seja como for, é uma vergonha para a família Aurelino.
- O senhor quis dizer para a nossa família?
Num primeiro momento, Marcelo percebeu que o pai não entendeu o questionamento. Pensando um pouco mais, porém, decidiu concordar.
- Sim, foi o que eu quis dizer - disse ele, ajeitando a gravata e pegando as chaves do carro - Comporte-se e estude. Quando voltar, quero ver seus resultados.
- Sim, senhor - disse Marcelo, enquanto observava o pai lhe dar as costas e fechar a porta atrás de si.
O silêncio tomou conta do apartamento. Marcelo pegou a mochila e caminhou pelo corredor até seu quarto. No caminho, sentiu como se as paredes se projetassem sobre ele de modo ameaçador.
Continue andando, era o que elas diziam, não se esqueça da sua função."
- Laila.
Nenhum comentário:
Postar um comentário