CAPÍTULO 1 - OS ÚLTIMOS CORTES
"- Você quer geleia na sua torrada?
Lilitan pegou uma faca na gaveta da cozinha e a mergulhou dentro do conteúdo do pote de geleia de framboesa.
Marcelo esfregou os olhos e deixou que um bocejo escapasse. Podia ver, pela janela, que o sol ainda não havia aparecido no horizonte. Era uma manhã comum de inverno, fria e mórbida, e lá estava ele, sentado à mesa ao invés de estar debaixo das cobertas. Ora, isso era impensável. Ele estava a poucos meses de concluir o Ensino Médio, e preguiça não constava em sua lista diária de afazeres.
Percebeu que ainda não havia respondido à pergunta de sua mãe.
- Quero, por favor - disse.
A mulher pegou uma fatia de pão e espalhou a geleia rosada. Seus movimentos eram metódicos, e ela não havia olhado para Marcelo uma única vez desde que ele entrara na cozinha. Após largar o pão diante do filho, Lilitan pegou uma caneca fumegante de café e o jornal daquela manhã. O rapaz, com o canto dos olhos, observou o nome - Notícias de Delce - em letras garrafais no topo da primeira página, que ele podia ver, pois o aparelho no qual sua mãe lia o jornal era transparente, permitindo que a frente e o verso pudessem ser vistos claramente.
- Como estão as notas? - perguntou ela, sem erguer os olhos das notícias.
- Bem - ele respondeu, com a boca cheia de geleia - Minha classe já foi submetida às provas de Física e Matemática Avançada. Durante essa semana, os professores devem fazer os últimos cortes.
Lilitan balançou a cabeça, mas nada acrescentou. Marcelo tomou um gole de leite. Este era um procedimento comum em sua Academia - no último ano do Ensino Médio, os alunos eram submetidos a algumas provas de Física e Matemática com conceitos avançados. Os exatoides que obtivessem as melhores notas seriam selecionados, ao fim do ano, para as três principais Universidades do país.
Aqueles que ficassem abaixo da nota de corte seriam rebaixados para a classe de Biológicas.
- Quando é que vocês vão buscar o André? - ele perguntou.
Pela primeira vez naquela manhã, Lilitan ergueu os olhos. Marcelo se referia ao irmão mais novo, que havia sido mandado por algumas semanas para uma Academia Internato, onde faria algumas provas específicas a pedido dos pais.
- Hoje - ela respondeu - Os resultados dele saem amanhã, e então saberemos se ele foi ou não rebaixado.
Ela não demonstrou, mas Marcelo sabia que sua mãe estava preocupada.
O rapaz colocou a caneca vazia na pia e saiu. Levou a mochila até a sala e observou a vista pela janela recém-lustrada. Os enormes prédios enchiam a visão, com seus formatos inusitados e mistura de cores. As ruas pareciam movimentadas - Marcelo podia ouvir a buzina dos carros e ver os exatoides andando pela calçada cinzenta.
Ao longe, ele podia ver os bairros menores, com casas baixas e ruas mais estreitas, onde os bioloides residiam. E, além daquele horizonte, estavam os bairros que nenhuma pessoa da classe dele se interessaria em ver - o lugar onde os humanoides viviam.
- Venha - ele ouviu Lilitan chamar - Você vai chegar atrasado se ficar enrolando."
- Laila.
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